De olho no retrovisor, capitão trombou com o país
Josias de Souza
06/04/2019 06h28
Quem olha muito para trás acaba ganhando um torcicolo. Ao ordenar às Forças Armadas que fizessem as "comemorações devidas" do golpe militar de 1964, Jair Bolsonaro obteve algo ainda mais grave do que a torção no pescoço: antipatia popular. O Datafolha informa algo que até as criancinhas de 5 anos já sabiam: a maioria dos brasileiros (57%) acha que o 31 de março de 1964, dia do golpe que resultou numa ditadura de 21 anos, deveria ser desprezado, não celebrado.
"Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar", disse Bolsonaro nesta sexta-feira, discursando para servidores do Planalto. O Exército discordou da segunda parte da frase, pois expurgou o orador dos seus quadros quando ele ainda era um capitão encrenqueiro. E o brasileiro, tomado pelo resultado do Datafolha, parece preferir que Bolsonaro seja mais presidente da República do que capitão.
É como se o brasileiro, ao tomar conhecimento dos festejos do golpe, indagasse para os seus botões: O que isso tem a ver com o meu café com leite? O problema da ordem que Bolsonaro deu às Forças Armadas é a distância que separa a agenda militar do presidente das aflições do brasileiro. Com o desemprego a pino, 13,1 milhões de patrícios no olho da rua, Bolsonaro imita o avestruz, enfiando a cabeça em 1964… E o Brasil lá longe, atormentado com 2019.
No discurso aos servidores do Planalto, Bolsonaro disse que às vezes pergunta ao Todo-Poderoso: "Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema." Muita gente acha essa descontração simpática. Bolsonaro parece humano. Sorri, diz piadas, é informal. Mas tudo isso tende a ser esquecido se o presidente se distancia do café com leite dos brasileiros.
Desemprego uma tragédia? Saúde pública um escândalo? Educação uma tristeza? Não é com Bolsonaro. Ele demorou três meses para notar que as caneladas no Congresso não ajudam na tramitação das reformas que tirarão a economia do freezer. Não há vestígio de novidade capaz de atenuar o descalabro hospitalar. Ricardo Vélez, a piada que foi nomeada para comandar a pasta da Educação, envergonha o país.
Contra esse pano de fundo, o negócio de Bolsonaro é trombetear a tese segundo a qual o golpe não foi um golpe e a ditadura jamais existiu. O capitão ainda não se deu conta. Mas, na condição de presidente, deveria cuidar dos segundos, porque as horas passam. Presidente que mata o tempo comete suicídio político.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.