Bolsonaro estende sua missão divina à Argentina
Josias de Souza
03/05/2019 04h52
Em discurso para uma plateia de evangélicos, na cidade catarinense de Camboriú, Jair Bolsonaro disse que foi salvo da facada por "milagre". Grudou no seu governo o selo de "missão de Deus." Parece confiar que todos aceitarão as presunções que cultiva a seu próprio respeito. Em matéria de política internacional, isso inclui concordar que sua missão divina lhe confere a prerrogativa de tratar a América Latina como uma espécie de Brasília hipertrofiada. Como não consegue apressar a derrubada do ditador Nicolás Maduro, decidiu interferir nos destinos da democracia na Argentina.
Numa de suas transmissões ao vivo pelas redes sociais, Bolsonaro disse que "ninguém aqui vai se envolver em questões de fora do país." Em seguida, meteu-se na eleição presidencial argentina, marcada para 27 de outubro. Disse ter "uma preocupação" com a hipótese de Cristina Kirchner, antecessora de Mauricio Macri, retornar ao poder. Ela "era ligada a Dilma, a Lula, à Venezuela e a Cuba. Se isso voltar, com toda a certeza, a Argentina vai entrar em uma situação semelhante à da Venezuela", declarou.
Mais cedo, numa entrevista ao SBT, Bolsonaro afirmara que considera o risco representado pela ascensão de Cristina Kirchner "mais importante" do que o flagelo da resistência de Nicolás Maduro no poder, pois a Argentina "seria uma outra Venezuela aqui no fundo."
Quer dizer: o capitão comparou um ditador venezuelano, que se manteve no cargo graças a um simulacro de eleição, com o hipotético retorno de uma presidente ao poder graças à vontade soberana dos argentinos. Igualou uma farsa eleitoral a uma campanha presidencial regular. Nivelou um pleito precedido da prisão dos opositores de Maduro, sem fiscalização e marcado pela fraude, a uma eventual alternância de poder na qual os argentinos não farão senão imitar os brasileiros no exercício do sacrossanto e democrático direito de fazer tolices por conta própria.
Qualquer presidente pode sonhar com o mito da excepcionalidade. Mas é inédita essa pretensão de Bolsonaro de converter o Brasil numa espécie de versão tupiniquim dos Estados Unidos. Faltam-lhe o topete de Donald Trump e, sobretudo, os mísseis do Pentágono para impor algum grau de submissão dos vizinhos à sua missão evangelizadora.
O mais assustador é que Bolsonaro aparentemente não está sendo cínico. Ele acredita mesmo que seu destino de glórias lhe dá o direito de exercer seu ineditismo no mundo para fins que desafiam a soberania alheia e o bom senso. Vá lá que se preocupe com a Venezuela. A ditadura de Maduro empurra para dentro do mapa do Brasil legiões de refugiados famintos. Mas o que justifica meter o bedelho na Argentina?
No discurso aos evangélicos, Bolsonaro admitiu indiretamente que outras pessoas poderiam desempenhar melhor as funções de presidente do Brasil. Mas parece considerar que sua Presidência é mais ou menos como o vinho. E tomará a forma do jarro que o Todo-Poderoso providenciar para abrigá-la. "Vocês sabem que Ele não escolhe o mais capacitado, mas capacita os escolhidos", afirmou.
Deus, como se sabe, existe e está em toda parte. Entretanto, Bolsonaro está empenhado em demonstrar que Ele já não dá expediente full time.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
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