Se Toffoli estivesse na 2ª Turma Lula estaria livre
Josias de Souza
26/06/2019 00h53
Dia: 26 de junho de 2018, véspera do recesso do Judiciário. Local: Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal. Por um placar de 3 votos a 2, o grão-petista José Dirceu, preso após condenação em segunda instância, foi autorizado a aguardar em liberdade pelo julgamento de um recurso. Corta para 25 de junho de 2019, também véspera de recesso. Por um placar idêntico —3 a 2— a mesma Segunda Turma se negou a abrir a cela de Lula para que ele esperasse na cobertura de São Bernardo pela apreciação do recurso que pede a suspeição de Sergio Moro no caso do tríplex.
Ao sonegar ao ex-presidente a liberdade provisória que concedera ao ex-ministro petista, a Segunda Turma reforçou o caráter lotérico do Judiciário. Embora os enredos fossem parecidos, havia uma diferença notável em cena: o assento que Dias Toffoli ocupava há um ano agora pertence a Cármen Lúcia (veja como votaram os ministros). Daí o placar com sinal trocado. Se Toffoli ainda estivesse na turma, o 'Lula Livre' seria a essa altura mais do que um simples slogan panfletário.
O recurso que questiona a imparcialidade de Moro é anterior às mensagens tóxicas atribuídas ao ex-juiz e aos procuradores da Lava Jato. Originalmente, a defesa de Lula escorou a alegada suspeição no fato de o magistrado ter trocado a 13ª Vara Federal de Curitiba pelo posto de ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro. O julgamento começara em dezembro. Os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia votaram contra a pretensão de Lula. Mas Gilmar Mendes pediu vista. Queria mais tempo para analisar o caso. Não tinha a mínima pressa.
Nesta terça-feira, Gilmar negou-se a discutir o mérito. Mas votou a favor da abertura da cela de Lula, para que ele esperasse em liberdade por um julgamento que ninguém sabe quando será retomado. O ministro reiterou o ponto de vista segundo o qual as mensagens atribuídas a Moro põem em dúvida sua atuação como juiz. Lembrou que "estamos a falar de réu preso". Dessa vez, exibia uma pressa que não existia em dezembro. Ricardo Lewandowski votou com Gilmar. Edson Fachin, Celso de Mello e Cármen Lúcia votaram a favor da manutenção da tranca.
Na sessão de junho de 2018, Dirceu questionava a prisão em segunda instância. Havia sido condenado a 30 anos e nove meses de cadeia por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Alegava que havia exagero na dosimetria da pena. Dias Toffoli foi o primeiro a votar.
Toffoli negou o pedido inicial da defesa, que contestava a detenção no segundo grau. Mas resolveu conceder algo inusitado: um habeas corpus "de ofício". Coisa que não constava do pedido dos advogados. Alegou que a prisão poderia ser suspensa porque havia "plausibilidade" no recurso que Dirceu apresentara contra a condenação. Portanto, seria razoável que o condenado aguardasse em liberdade.
Coube a Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo, fazer o contraponto nos dois casos. Nesta terça-feira, nas pegadas do voto em que Gilmar defender a soltura de Lula, Fachin reiterou a posição contrária que manifestara em dezembro. Realçou que as mensagens evocadas contra Moro não foram submetidas "ao escrutínio pelas autoridades judiciárias antecedentes." No português das ruas: antes de chegar ao Supremo, a defesa de Lula teria de ase quexar no TRF-4 e no STJ. "O Supremo Tribunal Federal não funciona como órgão de revisão direta de atos jurisdicionais de atos imputados a juízes de primeiro grau", declarou Fachin.
Gilmar não deu o braço a torcer. Retomando a palavra, declarou que não levava em conta as mensagens expostas nas manchetes há três semanas. Para ele, há no pedido original da defesa de Lula elementos suficientes para colocar a atuação do ex-juiz Moro sob suspeição. "De fato, há elementos, independentemente dos dados até aqui fornecidos pelo The Intercept. Independentemente disso, estou dizendo, apenas de fatos que já constam dos autos."
Há um ano, quando Toffoli propôs a libertação de Dirceu por conta própria, Fachin pediu vista do processo assim que sentiu o cheiro de queimado. Em condições normais, o julgamento é suspenso quando isso ocorre. Os advogados foram ao microfone para encarecer que a liberdade fosse concedida, pois o recesso do Judiciário submeteria o preso a um suplício injusto, já que seu recurso era considerado "plausível".
A despeito do pedido de vista de Fachin, Toffoli deu de ombros para as regras regimentais que levariam à suspensão do julgamento. Concedeu o tal habeas corpus "de ofício". Foi ecoado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Vencido, Fachin zangou-se:
"Entendo não caber o deferimento da cautelar porque, antes de tudo, entendo inexistir a alegada violação, porquanto ato reclamado limitou-se a estabelecer com amparo e entendimento massivo desta corte a determinação de início de cumprimento provisório da pena, imposta ao reclamante, quando já não mais pendiam recursos dotados de efeito suspensivo [na segunda instância]".
Toffoli não se deu por achado: "Vossa excelência está colocando no meu voto palavras que não existem. Eu jamais fundamentei contrariamente à execução imediata da pena pelo Tribunal Regional Federal. O que eu assentei é que, diante da plausibilidade jurídica dos recursos excepcionais, eu entendo necessária a concessão do HC de ofício". Fachin acomodou uma lápide sobre o lero-lero: "Nós dois estamos entendendo o que estamos falando."
Antes de vestir toga, Toffoli foi assessor da liderança do PT na Câmara, advogado eleitoral de Lula, auxiliar jurídico do próprio José Dirceu na Casa Civil da Presidência e Advogado-Geral da União no governo do agora presidiário de Curitiba. Por uma dessas trapaças do destino, sua substituta Cármen Lúcia assimiu a presidência da Segunda Turma nesta terça-feira. Coube a ela anunciar a decisão sobre Lula: "Portanto, a proclamação do resultado: adiado o julgamento e indeferida a proposta de liminar apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, que foi seguido pelo ministro Ricardo Lewandowski, vencidos na apresentação desta proposta."
Um passeio pelos arquivos da Segunda Turma revelam o tamanho da generosidade que o colegiado teve com José Dirceu, hoje devolvido à cadeia graças a uma nova condenação em segunda instância. Por exemplo: o ex-prefeito da cidade de Redenção do Gurgueia (PI), Delano Parente, foi acusado dos mesmos crimes atribuídos a Dirceu: corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Mas teve o habeas corpus negado pela Segunda Turma. Alegou-se que a prisão tinha sido baseada na prática habitual e reiterada dos crimes. Exatamente o mesmo argumento usado para encarcerar Dirceu. Delano desviara R$ 17 milhões. Dirceu, R$ 19 milhões, sem mencionar o mensalão.
Outro exemplo: preso há quase três anos, Thiago Maurício Sá Pereira, conhecido como Thiago Poeta, teve um pedido de habeas corpus negado pela Segunda Turma em março do ano passado. Acusado de traficar drogas, foi preso com 162 gramas de cocaína e 10 gramas de maconha. Sua pena foi menor que a de Dirceu: 17 anos e 6 meses, contra 30 anos. Mas os ministros não tiveram com o "Poeta" a complacência dedicada a Dirceu.
Há mais: réu primário, Alef Gustavo Silva Saraiva foi flagrado com menos de 150 gramas de cocaína e maconha. Depois de passar quase um ano na cadeia, pediu um habeas corpus ao Supremo. Num julgamento ocorrido em dezembro de 2016, a prisão foi mantida por 4 votos. Gilmar Mendes ausentou-se.
Presente, Ricardo Lewandowski soou implacável: "…Há farta jurisprudência desta Corte, em ambas as Turmas, no sentido de que a gravidade in concreto do delito ante o modus operandi empregado e a quantidade de droga apreendida – no caso, 130 invólucros plásticos e 59 microtubos de cocaína, pesando um total de 87,90 gramas, e 3 invólucros plásticos de maconha, pesando um total de 44,10 gramas (apreendidas juntamente com anotações referentes ao tráfico e certa quantia em dinheiro), permitem concluir pela periculosidade social do paciente e pela consequente presença dos requisitos autorizadores da prisão cautelar elencados no art. 312 do CPP, em especial para garantia da ordem pública."
Ao conceder o meio-fio a Dirceu, a Segunda Turma transformou-o numa anomalia, pois havia na ocasião muitos outros presos da Lava Jato que se encontravam atrás das grades há muito mais tempo. Os ex-deputados Pedro Correa, André Vargas e Luiz Argolo estavam na tranca desde abril de 2015. Com eles, o ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto. Marcelo Odebrecht, fora detido em junho de 2015. Os ex-diretores da Petrobras Renato Duque e Jorge Zelada, desde março e julho de 2015.
Artigo publicado no Globo pelo procurador regional da República José Augusto Vagos mencionou casos que tornam a liberação de Dirceu ainda mais espantosa. No texto, o procurador mencionou exceções abertas no Supremo às regras previstas na súmula 691, que veda a concessão do chamado "habeas corpus canguru" (contra indeferimento de liminar na instância inferior). O tratamento excepcional beneficia os graúdos da corrupção, nunca a arraia-miúda.
Eis um trecho do texto: "…A Defensoria Pública de São Paulo impetrou no STF o HC 157.704, para obter a liberdade de Valdemiro Firmino, acusado de ter roubado R$ 140,00, em 2013. Alegava a Defensoria razões humanitárias: Valdemiro é cego, HIV positivo e sofria de ataques de convulsão na unidade prisional. O relator, ministro Gilmar Mendes, foi rigoroso. A liminar foi indeferida: 'Na hipótese dos autos, não vislumbro nenhuma dessas situações ensejadoras do afastamento da incidência da Súmula 691 do STF.'."
O procurador prossegue: "…A mesma caneta conferiu maior sorte a quatro acusados na Operação Câmbio, Desligo, que desvendou um esquema de lavagem de dinheiro de US$ 1,6 bilhão. Outros 17 acusados em operações da Lava-Jato no Rio de Janeiro mereceram a mesma deferência entre maio e junho deste ano. Ao contrário do Valdemiro, todos esses réus foram beneficiados por liminares que devolveram as suas liberdades sem que fosse preciso esperar o julgamento definitivo dos HCs que impetraram no TRF-2 e no STJ. Alguns desses HCs sequer chegaram a passar por essas instâncias."
Noutra passagem, o procurador anotou: "Em junho deste ano (2018), o ministro Dias Toffoli negou habeas corpus que objetivava reconhecer insignificância a um morador de rua alcoólatra que furtou uma bermuda de R$ 10,00, que foi devolvida à loja (HC 143921). […] Um mês antes, o mesmo ministro manteve na prisão um homem acusado de ter furtado sacas de café, cujo valor era de R$ 81,00, as quais foram mais tarde devolvidas. Do mesmo modo, o ministro Lewandowski, há 8 anos, negou habeas corpus para um acusado de furtar objetos que, no conjunto, valiam R$ 202,00."
A Justiça, como se sabe, é cega. Mas a Segunda Turma do Supremo, como vê, já teve um olfato invejável. Para azar de Lula, o faro de Toffoli foi deslocado para a presidência da Suprema Corte.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.