Antecipar férias sem votar reforma é um escárnio
Josias de Souza
12/07/2019 16h05
Se Deus baixasse na Câmara para intimar seus frequentadores a optar entre a responsabilidade fiscal e o ócio, alguns deputados dariam uma resposta fulminante: "Dane-se o déficit da Previdência". E ficaria claro que, para certos representantes da sociedade, a ociosidade remunerada é o grande objetivo. Só as férias interessam. O resto é hipocrisia.
Nos últimos dias, tudo parecia muito anormal. Num surto de produtividade, os deputados prometiam votar os dois turnos da reforma da Previdência nesta semana. Se necessário, trabalhariam no sábado, quiçá no domingo. De repente, a coisa vai voltando à normalidade. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, admitiu que a votação em segundo turno pode ficar para agosto. Ficará para o dia 6 de agosto.
O Estado brasileiro foi à breca. A reforma previdenciária não é senão uma tentativa de reduzir o tamanho do buraco. Coisa urgente, para ontem. Não há razões objetivas para o adiamento, pois o início do recesso está marcado para 18 de julho. Mas os deputados decidiram adiantar o relógio. Querem enforcar uma semana.
Se o Brasil fosse um país lógico, o recesso parlamentar de julho não existiria, pois deputados e senadores já dispõem de férias hipertrofiadas entre o final de dezembro e o início de fevereiro. Mesmo dando-se de barato que a excrescência é inevitável, o recesso deveria ser cancelado. Não por causa do rombo da Previdência, mas em função da Lei de Diretrizes Orçamentárias, a LDO.
A Constituição determina que Câmara e Senado não podem desligar suas caldeiras antes de votar a LDO. E ela não foi apreciada nem na Comissão de Orçamento. Ou seja: as férias são inconstitucionais. Deputados e senadores dão de ombros. Alega-se que vem aí o "recesso branco". Lavrem-se as atas. E não se fala mais nisso.
"O importante é terminar o primeiro turno hoje", afirma um resignado Rodrigo Maia. "Depois disso, vamos ver se o quórum se mantém para sábado, semana que vem ou agosto."
Excetuando-se o massagista da Paolla Oliveira, nenhum outro trabalhador brasileiro tem um 'emprego' melhor do que os parlamentares. O horário é flexível. O dinheiro não é ruim: R$ 33,7 mil, fora os mais de R$ 100 mil para as despesas do mês. Há duas férias por ano. O apartamento é funcional. O plano de saúde cobre desde frieira à internação no Albert Einstein.
Tudo isso mais a prerrogativa de mandar às favas o interesse público achando que não deve nada a ninguém. Muito menos explicações. Sob o regime patrimonialista brasileiro, o Congresso não tem congressistas. Os congressistas é que têm o Congresso. Fazem o que bem entendem. No momento, fizeram uma opção preferencial pelo escárnio.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.