Conceito de família do governo é inconstitucional
Josias de Souza
14/09/2019 11h38
Sob Jair Bolsonaro, o governo articula com países conservadores uma aliança mundial "pró-família", informa o repórter Jamil Chade. A iniciativa se insere num esforço diplomático para defender teses conservadoras em fóruns internacionais, sobretudo na ONU. Prega-se, por exemplo, a substituição do conceito de "igualdade de gênero" pela antiga formulação de "igualdade entre homens e mulheres". Nessa versão, não haveria senão o sexo biológico. A cruzada em que se meteu o governo não é apenas antiquada, mas inconstitucional.
Em 5 de maio de 2011, ao final de um julgamento que durou dois dias, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo como uma unidade familiar. Relator do processo, o então ministro Ayres Britto, hoje aposentado, argumentou que a Constituição veda em seu artigo 3º, inciso IV, qualquer discriminação em virtude de sexo, raça e cor. Em consequência, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual.
O voto de Ayres Brito foi acompanhado pela unanimidade dos ministros presentes à sessão. Seguiram o relator: Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello, Cezar Peluso, Cármen Lúciae Ellen Gracie. Com essa decisão, excluiu-se do artigo 1.723 do Código Civil brasileiro o significado que gestores públicos e magistrados invocavam para negar direitos a casais gays.
Eis o que anota o artigo 1.723 do Código Civil: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família." A decisão da Suprema Corte invalidou o trecho que menciona "o homem e a mulher". Nas palavras de Ayres Britto, "o sexo das pessoas não se presta para desigualação jurídica." Na prática, a gestão Bolsonaro quer ressuscitar conceitos juridicamente mortos.
Em dezembro do ano passado, apenas 19 dias antes da posse de Bolsonaro, o Supremo recebeu o certificado MoWBrasil 2018, oferecido pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco, braço da ONU para as áreas da educação, da ciência e da cultura. A decisão que reconheceu a família homoafetiva foi classificada como "patrimônio documental da humanidade". Ayres Britto recebeu a honraria em nome do Supremo. Ironicamente, a cerimônia foi realizada numa entidade com vínculo militar: o Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, no Rio de Janeiro.
Nos últimos três meses, informa o repórter Jamil Chade, a diplomacia brasileira passou a vetar nas resoluções da ONU termos como "gênero". Sob nova direção, o Brasil atrasa seu relógio para aliar-se a governos ultraconservadores do Oriente Médio num esforço para barrar documentos que tratem de "educação sexual". Quebra lanças para arrancar dos textos a expressão "igualdade de gênero". Aos pouquinhos, a gestão Bolsonaro vai escorregando do conservadorismo para o arcaísmo.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.