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Ágatha vai à cova e Witzel leva a filha à escola

Josias de Souza

23/09/2019 04h49

Wilson Witzel teve um domingo assombrosamente normal. Plugou-se às redes sociais antes do nascer do Sol. Às 5h, postou um "parabéns" à cidade de São Gonçalo, que faz aniversário de 129 anos. Celebrou o Dia Mundial Sem Carro. "Eu apoio essa iniciativa por um mundo sem poluição." E pendurou nas redes uma foto na qual aparece de costas ao lado de uma de suas filhas. "Minha filha, Beatriz, faz hoje a prova de ingresso para o Colégio Militar", anotou na legenda.

Beatriz Witzel, 11, é apenas três anos mais velha do que Ágatha Félix, 8, a menina que foi morta por um tiro de fuzil, quando estava com sua mãe numa Kombi, durante operação policial no Complexo do Alemão. Executada na noite de sexta-feira, Ágatha foi sepultada neste domingo. Embora já fossem decorridos quase três dias da tragédia, o governador fluminense manteve em relação ao tema um silêncio tumular.

Por uma trapaça do destino, Ágatha foi conduzida à cova por sua família no mesmo dia em que o pai de Beatriz levou-a para a escola. Produziu-se um incômodo contraste entre o domingo normal de Witzel e a anormalidade decorrente da política de segurança baseada no lema do "tiro na cabecinha". A execução de mais uma alma inocente, de fulgurante jovialidade, é um acontecimento do tipo que fere a rotina como uma lâmina fria, fazendo o cotidiano escapar do controle.

Ignore-se por um instante o tiro que matou Ágatha, e fixe-se a atenção no que aconteceu antes e depois do disparo. Antes, Witzel consolidou-se como narrador de uma nova era. Disse coisas assim: "A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo!" Ou assim: "Cova, a gente cava." Ou ainda: "Criminosos serão combatidos e caçados nas comunidades." Depois, o silêncio.

Banalizou-se o noticiário sobre policiais entrando em bairros onde moram pessoas pobres, confrontando-se com bandidos e matando "suspeitos". Em três casos extremos, abateram-se, por exemplo, suspeitos de portar armas e drogas. Um carregava uma furadeira. Outro, um guarda-chuva. Um terceiro levava na mochila um par de chuteiras, uma sandália de dedo e R$ 85,00. Tudo isso antes do tiro que transfixou o corpo de Ágatha. Depois, o silêncio de Witzel.

Pode-se imaginar que o governador não tenha perdido a loquacidade no ambiente familiar. Cercada de guarda-costas, Beatriz chegou da escola. E o pai-governador decerto perguntou: "Como foi a prova, minha querida?" A menina talvez tenha respondido: "Acho que fui bem, papai". Esse é um tipo de diálogo banal que os familiares de Ágatha jamais poderão travar.

Se a normalidade reinante no cotidiano de Wilson Witzel tem alguma serventia é para demonstrar que algo de muito anormal precisa acontecer no Rio de Janeiro e no Brasil.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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