STF só não lembra de presos pobres esquecidos
Josias de Souza
16/10/2019 00h46
A julgar pelo cheiro de queimado, o Supremo Tribunal Federal deve mesmo rever a regra que permite a prisão de condenados na segunda instância. O que se discute agora é o tamanho do recuo. O retrocesso será grande se o cumprimento da pena for adiado até o julgamento de um recurso especial no Superior Tribunal de Justiça, o STJ. E será infinitamente maior se a punição for empurrada com a barriga até o julgamento de um recurso extraordinário no Suprema Corte, como parece mais provável a essa altura.
Fala-se muito sobre o descalabro de abrir as celas justamente depois que a oligarquia política e empresarial começou a ser enviada para o xilindró. Mas comenta-se pouco sobre o outro lado do sistema carcerário, ainda mais obscuro. Confirmando-se a tendência do Supremo de livrar da tranca os condenados em duas instâncias, ficará ainda mais gritante o absurdo a que estão submetidos os brasileiros muito pretos, muito pardos e muito pobres que mofam nos fundões dos presídios sem ter passado por nenhuma instância.
Pelas contas do Conselho Nacional de Justiça, há no Brasil cerca de 844 mil presos. Desse total, 40% não dispõem de sentença. Estamos falando de algo como 340 mil pessoas que dormem na cadeia sem um veredicto condenatório. Esses encarcerados sem Supremo são chamados de "presos provisórios". É gente que não tem dinheiro para pagar um advogado.
Sempre que são lembrados da existência de presos esquecidos, ministros como Gilmar Mendes costumam mencionar os mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça para detectar aberrações. O problema é que esses mutirões, feitos de raro em raro, servem mais para realçar o problema do que para resolvê-lo. Num deles, foram encontrados presos que aguardavam por sentenças há mais de uma década —11 anos num caso descoberto no Espírito Santos; 14 anos num processo paralisado no Ceará. É nesse contexto que o Supremo está prestes a restaurar o ambiente em que a punição de condenados graúdos será transferida para um ponto qualquer no infinito, onde reluz o pus da impunidade.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.