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Livre, Lula continua preso a uma retórica cínica

Josias de Souza

09/11/2019 03h38

Libertado pelo Supremo Tribunal Federal após um ano e sete meses de encarceramento, Lula revelou-se um orador prisioneiro da retórica cínica. Ao sair da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, reencontrou-se com o microfone. Pronunciou um discurso de porta de cadeia (íntegra disponível no rodapé). Nele, disse ter visto na TV "os dados do IBGE". Referia-se ao relatório que mostrou que 13,5 milhões de brasileiros vivem na extrema pobreza, com menos de R$ 145 por mês.

"Depois que eu fui preso, depois que eles roubaram do [Fernando] Haddad, o Brasil não melhorou, o Brasil piorou", declarou a divindade petista a uma plateia de devotos. "O povo tá passando mais fome, o povo tá desempregado, o povo não tá com trabalho de carteira assinada. O povo tá trabalhando de Uber, o povo tá trabalhando de entrega de pizza, o povo tá trabalhando sem o menor respeito".

Lula esqueceu de lembrar —ou lembrou de esquecer— que os dados do IBGE referem-se ao ano de 2018. Nada a ver, portanto, com o governo de Jair Bolsonaro, o rival que ele acusa de ter prevalecido nas urnas fraudando a disputa com o seu pupilo Haddad. O perigo de dizer meias verdades é o orador privilegiar exatamente a metade que é mentirosa.

O divo petista se absteve de mencionar, por exemplo, um dado fornecido pelo IBGE: a legião dos extremamente pobres cresce desde 2014, ano em que Dilma Rousseff mergulhou a economia brasileira no caos. Entre 2013 e 2016, quando a "gerentona" de Lula dava as cartas no Planalto, a economia encolheu notáveis 6,8%. Graças ao governo empregocida de Dilma, a taxa de desemprego saltou de 6,4% para 11,2%. Foram ao olho da rua algo como 12 milhões de trabalhadores.

Em 2014, quando Lula carregou Dilma nos ombros para um segundo mandato, apenas dois empreendimentos prosperavam no Brasil: a corrupção e a incompetência governamental. Os dois fenômenos compõem a obra de Lula, pois foi nos governos dele que nasceram o mensalão e o petrolão. Foi de sua autoria também a fábula baseada na superstição de que Dilma seria uma administradora de mostruário.

Noutro trecho do seu discurso, Lula atacou os algozes Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Queixou-se da "canalhice que o lado podre do Estado brasileiro fez comigo e com a sociedade brasileira. O lado podre da Justiça, o lado podre do Ministério Público, o lado podre da Polícia Federal, o lado podre da Receita Federal. Armaram, trabalharam para tentar criminalizar a esquerda, o PT e o Lula."

De fato, houve uma criminalização de pedaços da política. Mas quem criminalizou a atividade foram os políticos criminosos. Plantaram bananeira dentro dos cofres públicos hipotéticos esquerdistas do PT e seus sócios direitistas de legendas como MDB e PP. Nada a ver, portanto, com ideologia, esquerdismo ou direitismo. O caso é de dinheirismo. E o dinheiro é público.

Na Lava Jato, houve devoluções e confiscos na casa dos bilhões. As cifras são evidências monetárias do estágio de decomposição a que chegou o Estado brasileiro na era petista.

Tomado pelo discurso de porta de cadeia, Lula sinaliza que não aprendeu nada durante os 580 dias de reclusão. Mantendo a toada, o líder máximo do petismo vai acabar convencendo a plateia de que o caso do PT já não é de autocrítica, mas de autópsia.

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Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.


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