Envio de Mourão a Buenos Aires é um mal menor
Josias de Souza
09/12/2019 19h09
Muitas vezes têm-se a impressão de que o maior déficit dos governos localiza-se entre as orelhas dos governantes. Em decisão tomada na última hora, Jair Bolsonaro reduziu o seu déficit cognitivo ao enviar o vice Hamilton Mourão a Buenos Aires para representar o Brasil na posse do novo presidente da Argentina, Alberto Fernández, nesta terça-feira.
O ideal seria que o próprio Bolsonaro fosse apertar a mão de Fernández, em respeito à tradição e ao interesse nacional. Entretanto, a presença de Mourão tornou-se um mal menor diante do ziguezague de Bolsonaro. Há um mês, o capitão cogitara enviar à posse do desafeto o ministro Osmar Terra (Cidadania).
Depois, Bolsonaro achou que não deveria dar tanto cartaz a um "esquerdista". Substituiu o ministro Terra pelo embaixador Sergio Danese, que comanda a embaixada do Brasil em Buenos Aires. Discute daqui, argumenta dali, o capitão convocou para a missão o general Hamilton 'Mal Menor' Mourão.
A pluralidade de interlocutores faz da diplomacia algo extremamente singular. Sob Bolsonaro, porém, subverteu-se até o mais trivial dos princípios. Foi desprezando o princípio da não intervenção em assuntos internos de outros países que Bolsonaro meteu-se na disputa presidencial da Argentina.
Bolsonaro conseguiu tornar-se inimigo de Fernández antes que ele fosse eleito. Declarou que, ao lado de sua vice Cristina o novo presidente argentino antes da eleição. Afirmou que Fernández e sua vice Cristina Kirchner transformariam a Argentina numa "nova Venezuela".
Ainda que a Argentina virasse uma sucursal do inferno, o governo brasileiro teria de dialogar com o capeta. A nação vizinha é a terceira maior parceira comercial do Brasil.
Em 2018, a soma de exportações e importações bateu em US$ 25,6 bilhões. As operações foram superavitárias para o Brasil em US$ 3,86 bilhões. Em 2017, o saldo positivo foi ainda maior: US$ 8,18 bilhões.
Num cenário assim, a animosidade de Bolsonaro pode custar caro. O preço ficará ainda mais amargo se o prejuízo alcançar o acordo firmada entre Mercosul e União Europeia.
Na diplomacia, nenhum sentimento deve estar acima do interesse nacional. Personalismo e ideologia são os dois caminhos mais curtos para o brejo. A ida de Mourão a Buenos Aires não sinaliza uma reviravolta diplomática. Mas revela que até Bolsonaro pode ser acometido de surtos repentinos de bom senso.
Sobre o autor
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.
Sobre o blog
A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.