Caso dos haitianos: Alckmin e Viana se insultam
A crise que eletrifica as relações entre São Paulo e Acre atingiu o apogeu no início da madrugada desta quarta-feira (30). Os governadores Geraldo Alckmin (PSDB) e Tião Viana (PT), que sempre foram afáveis um com o outro, trocaram insultos em público. Chamado por Alckmin de "irresponsável" por enviar refugiados haitianos para a capital paulista sem aviso prévio, Viana abespinhou-se. "Indago a esse sujeito que governa São Paulo: tem veio de racismo ou intolerância aos irmãos haitianos em sua atitude?".
Foi numa entrevista à radio Jovem Pan, na noite passada, que Alckmin acusou o colega do Acre de exibir "um comportamento totalmente irresponsável". Disse ter sido pego "de surpresa" com a chegada dos haitianos. Carregou nos adjetivos. "É um absurdo verdadeiro isso."
"Uma coisa é você ter um processo migratório, um programa migratório. […] Outra coisa é uma coisa totalmente ilegal, sem nenhum visto de entrada, de permanência, de possibilidade de trabalho", afirmou Alckmin. "Simplesmente vai chegando em ônibus, vindo do Acre aqui para São Paulo, sem nenhum preparo prévio das condições onde as pessoas vão ficar, das questões legais, da capacitação para o mercado de trabalho (ouça abaixo)."
Avisado sobre a manifestação de Alckmin, Tião Viana apressou-se em ouvir a gravação, disponível na internet. Reagiu por meio de uma nota ácida. Divulgou-a quando o relógio de Brasília já marcava mais de meia-noite. No fuso de Rio Branco, a capital acriana, contabilizavam-se duas horas a menos. Até então, Viana trocava juras de inimizade apenas com uma subordinada de Alckmin, a secretária de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo, Eloisa de Souza Arruda.
Na véspera, Viana havia autorizado seus advogados a protocolarem na Justiça estadual do Acre uma ação por danos morais contra Eloisa Arruda, que já o havia chamado de "irresponsável", além de comparar suas atitudes às de um "coiote", como são chamados os traficantes de pessoas. Ao ler aqui no blog a notícia com o teor da ação judicial, a secretária de Alckmin dera de ombros:
"Estou pronta para dar a devida resposta a essa ação", dissera Eloisa. "A atitude do senhor Tião Viana tem por objetivo desviar o foco da grave situação humanitária, que está posta e que foi mal conduzida pelo seu governo. De nossa parte, continuaremos fazendo o melhor para acolher os imigrantes haitianos."
Foi contra esse pano de fundo, já conflagrado, que Alckmin veio à boca do palco. E Tião Viana: "Ao invés de um caminho de civilidade, diálogo, equilíbrio institucional e de compromisso com a democracia, o governador Alckmin, que eu já desconfiava, por sua omissão e silêncio, estava escondido atrás da cortina na sala de sua secretária de Justiça, que me fez agressão, agora se expõe e me faz um ataque pessoal."
Numa entrevista que concedera ao blog no final de semana, Viana dissera estranhar "o silêncio de Alckmin". Parecia esperar que o colega desautorizasse sua secretária de Justiça. Deu-se o oposto. O governador paulista avalizou Eloisa Arruda. Classificou de "um absurdo verdadeiro" o processo movido por Tião Viana.
"Se há alguém comprometido com a causa humanitária é a secretária Eloisa Arruda, que até ficou um período fora do país, no Timor Leste, ajudando no país estrangeiro pessoas em dificuldade e privação. Acho que ele nem conhece a história da secretária, que é uma procuradora de Justiça, inclusive com experiência internacional exatamente nessa área [de ajuda humanitária]."
Viana escreveu em sua nota que a política "às vezes nos chama para esse ambiente" de desavenças. E mirou, por assim dizer, abaixo da linha da cintura. Referiu-se a Alckmin como "uma melancólica expressão de mediocridade e incompetência."
Prosseguiu: "Não sabe ser solidário e cumprir suas obrigações de chefe de governo com 400 imigrantes, irmãos haitianos, deixando-os à mercê de uma, duas refeições ao dia, enquanto nós, no Acre, acolhemos mais de 20 mil imigrantes, que passaram por aqui, assegurando dignidade e respeito, dando-lhes o direito de ir e vir."
Ironicamente, enquanto trocam sopapos verbais em cena aberta, Alckmin e Viana apontam para um culpado que frequenta o ringue invisível: o governo federal. Desde dezembro de 2010 o Acre convive com a chegada de levas de imigrantes à cidade de Brasiléia. Na entrevista ao blog, o petista Viana queixara-se do fato de o governo brasileiro não condicionar a recepção aos haitianos à obtenção de vistos de entrada na embaixada do Brasil em Porto Príncipe, a capital do Haiti.
Eis o que dissera Viana no final de semana: "Temos que ser solidários, mas não há nenhum país no mundo que acolhe imigrantes que venham ilegalmente, com ou sem coiote, dá abrigo, alimentação e ainda procura emprego para eles. Isso, obviamente vai ter consequências que podem ser dramáticas para o Brasil. A África toda está olhando para essa rota que se abriu. Quando era o só o Haiti, já era um problema. Agora temos da República Dominicana à África."
Ao falar à rádio na noite passada, Alckmin também apontou para Brasília. "Não recebemos nenhum comunicado, nenhuma informação, nenhum aviso prévio nem do governo do Acre nem do governo federal, que é responsável pela migração, pelo visto de entrada, o visto de permanência, a possibilidade do trabalho, a carteira de trabalho. Simplesmente foram chegando ônibus, ônibus, ônibus aqui em São Paulo. Uma coisa até desumana, porque as pessoas [chegam] sem a menor condição, sem ter local adequado para poder se instalar."
Mais cedo, antes de se engalfinharem, os chefes dos governos do Acre e de São Paulo haviam tocado o telefone para Brasília. Tião Viana ouvira do ministro Manoel Dias (Trabalho) a promessa de organizar para a semana que vem uma reunião interministerial, com a presença de representantes dos governos dos dois Estados e da prefeitura paulistana. Alckmin contou que, após conversar com a secretária Eloisa Arruda, o ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) lhe telefonara. "Nós vamos ter uma conversa para poder estabelecer os critérios, enfim, fazer um trabalho correto e adequado" com os refugiados hatianos.
Que lição extrair desse episódio? Na política, a opção ao diálogo é a troca de sopapos. Quando os gestores públicos esquecem que o Estado está acima das diferenças partidárias, o resultado é a ineficiência. Se vivêssemos no século 19, as ofensas seriam lavadas com sangue, num bom duelo. Não resolveria os problemas, mas garantiria diversão à plateia. Como o país não é um romance de época, os atores da refrega em cartaz no eixo Brasília-Rio Branco-São Paulo talvez devessem considerar a hipótese de travar uma boa e produtiva conversa.
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