Erros da União produziram a crise dos haitianos
Diz o brocardo que errar é humano. Porém, no caso dos refugiados haitianos, o governo federal fez uma opção preferencial pelo erro. Sob Dilma Rousseff, a União se esforça há mais de três anos para demonstrar que, entre o certo e o errado, há sempre espaço para mais erros. O penúltimo equívoco foi cometido há quatro dias, numa reunião coordenada pelo ministro Aloizio Mercadante (Casa Civil).
Num instante em que o país não sabe o que fazer com os cerca 1.200 haitianos que cruzam ilegalmente todos os meses a fronteira do Peru com o Estado do Acre, o governo decidiu realizar no Haiti uma campanha de estímulo à imigração legal. A pretexto de inibir a ação dos 'coiotes', o Brasil vai oferecer vantagens aos haitianos que, antes de viajar para o Brasil, pedirem visto no Haiti ou nos países que estão na rota da imigração, como Equador e Peru, por exemplo.
Com essa providência, Brasília escancara uma porta que já está arrombada sem levar em conta o fato de que os haitianos já não são o único problema. Neste sábado (3), havia no Acre 541 imigrantes. O grosso entrou no país ilegalmente. Recém-chegados, 70 ainda estavam na cidade de Brasiléia. Outros 471 já haviam sido transferidos para um abrigo na capital, Rio Branco.
Desses, 351 ainda aguardavam pela emissão do documento da Polícia Federal que lhes garantirá a permanência no Brasil por pelo menos cinco anos. Na fila, havia apenas 4 refugiados do Haiti. A maioria, 345 (98,2%), veio do Senegal. De resto, há no abrigo acriano gente procedente da República Dominicana, da Nigéria, da Gâmbia e até um colombiano. Passam regularmente por ali cidadãos vindos de Serra Leoa, Marrocos, Bangladesh e Camarões.
Os ônibus que provocaram uma troca de insultos entre os governadores Tião Viana, do Acre, e Geraldo Alckmin, de São Paulo, continuam partindo de Rio Branco em ritmo diário. Na quinta-feira, ganharam a estrada dois ônibus, com cerca de 80 pessoas. Na sexta, mais um ônibus, com 44 passageiros. Outros dois comboios estavam programados para o sábado.
Estiveram com Mercadante na reunião em que se decidiu estimular a obtenção de vistos no Haiti os ministros José Eduardo Cardozo (Justiça) e Luiz Alberto Figueiredo (Relações Exteriores). Dessa vez, Brasília não teve nem mesmo a preocupação de inovar. O governo reincide num erro que já havia cometido em janeiro de 2012.
Naquela época, os haitianos que haviam começado a chegar ao Brasil em dezembro de 2010 eram contabilizados em 4 mil. Impressionado com as dimensões da encrenca, o governo decidira condicionar a entrada à obtenção de vistos em Porto Príncipe. Instituiu-se uma cota de 1.200 permissões por ano. Ou 100 por mês. Fora disso, avisava o doutor Cardozo em 2012, os haitianos "estarão em situação irregular e, como qualquer outro estrangeiro nessa situação, serão notificados e extraditados."
Decorridos dois anos, não há notícia de um mísero caso de extradição. Como consequência, intensificou-se a ação dos 'coiotes', como são chamados os traficantes de pessoas que cobram mais de US$ 3 mil para atravessar imigrantes ilegais na floresta amazônica, rumo ao Acre.
Em abril de 2013, o governo revogou o teto anual de 1.200 vistos. A alegação era a de que o teto mensal de 100 autorizações jogava os haitianos que ultrapassavam a cota no colo dos 'coiotes'. Resultado: hoje, chegam ao Acre 1.200 refugiados por mês, não por ano. A maioria sem o visto. A soma total de refugiados acolhidos nessas condições em três anos quatro meses já ultrapassa a casa dos 25 mil.
É nesse contexto que Mercadante, Cardozo e o chanceler Figueiredo concluíram que o melhor a fazer é convidar mais haitianos a imigrarem para o Brasil com os vistos. Dessa vez sem limites quantitativos. "Vamos fazer, sob coordenação do Itamaraty, uma campanha de esclarecimento das vantagens, dos benefícios que tem o haitiano ao vir para o Brasil regularmente", disse Cardozo (veja no vídeo abaixo).
Na prática, o anúncio feito por Cardozo é inepto e temerário. É inepto porque promete aos haitianos que chegarem com o visto prioridade em benefícios educacionais, trabalhistas e sociais que o governo não consegue prover decentemente nem aos brasileiros. É temerário porque potencializa uma rota de imigração ilegal cujas facilidades já foram farejadas na África. Se ouvisse a Polícia Federal, subordinada à sua pasta, o ministro da Justiça seria informado de que a situação fugiu ao controle. Os 'coiotes' faturam impunemente.
Com mais de três anos e 25 mil refugiados de atraso, o governo informa que promoverá "um diálogo" com os Estados para criar "receptivos", seja lá o que isso signifique, de modo a acolher os haitianos adequadamente. Beleza. O problema é que, ao fazer pose de nação humanitária sem adotar providências que moralizem suas fronteiras, o Brasil torna-se uma oportunidade que os 'coiotes' aproveitam.
Noutros países, os traficantes de seres humanos orientam os miseráveis sujeitos à sua exploração a fugirem das autoridades. No Brasil, o esconde-esconde só dura até o vizinho Peru. Depois de cruzar a fronteira, o traficado é orientado a procurar o Estado. Que premiará a ilegalidade com abrigo, três refeições diárias, assistência emergencial de saúde, visto de permanência, carteira de trabalho e passagem rodoviária até São Paulo e os Estados "ricos" do Sul. Além de não assegurar a todos os refugiados uma vida menos miserável do que a que eles tinham em seus países de origem, o governo brasileiro subverte o brocardo. Prova que é errando que se aprende… a errar.
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