Auditores deflagram reação contra cerco à Receita
A exemplo do que ocorre na Polícia Federal, as ameaças de ingerência política instauraram uma crise na Receita Federal. Num movimento que inclui a hipótese de renúncia coletiva das chefias do órgão nos estados, os auditores fiscais decidiram deflagrar um "contra-ataque" para deter o que o Sindifisco, sindicato nacional da corporação dos auditores fiscais, classifica de "onda de ataques sem precedentes" para "deslegitimar e apequenar a atuação do Fisco brasileiro". O marco inaugural da reação ocorrerá na quarta-feira (21). Agendou-se para essa data manifestação batizada de "Dia Nacional do Luto". Os auditores foram instados a vestir-se de preto ou ostentar lenços, tarjas e faixas dessa cor.
Na definição do Sindifisco, o dia do luto será o "ponto de partida para diversas outras ações que buscarão defender a classe e a instituição Receita Federal". O ato de resistência ocorre num instante em que Jair Bolsonaro ameaça exonerar o superintendente da Receita no Rio de Janeiro, Mário Dehon, e de outros dois servidores do órgão no estado: José Alex de Oliveira, delegado da alfândega do porto de Itaguaí; e Adriana Trilles, chefe da Delegacia da Receita na Barra da Tijuca, bairro onde Bolsonaro possui residência.
Afora "as tentativas de ingerência política" que têm origem no Planalto, os auditores apontam outras origens da "artilharia" contra a Receita: parlamentares, ministros do Tribunal de Contas da União e, sobretudo, uma ofensiva do Supremo Tribunal Federal. Guerreiam para reverter o afastamento de dois auditores: Luciano Francisco Castro e Wilson Nelson da Silva. Na semana passada, o Sindifisco contratou para defender a dupla o jurista Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça e ex-corregedor nacional de Justiça.
Luciano Castro e Wilson da Silva foram destituídos de suas funções no início de agosto pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito sigiloso aberto por ordem de Dias Toffoli, presidente do Supremo, a pretexto de investigar supostos ataques contra a Corte e seus membros. O procedimento enfrenta questionamentos dentro do próprio tribunal, pois foi deflagrado sem a participação do Ministério Público Federal. De resto, o relator não foi escolhido por sorteio, como ocorre em todos os processos que tramitam na Suprema Corte. Em decisão inusual, Moraes foi designado por Toffoli para exercer a função.
Além de afastar os auditores, Alexandre de Moraes suspendeu investigação da Receita sobre 133 contribuintes. A lista inclui várias autoridades. Entre elas o ministro do Supremo Gilmar Mendes e a mulher dele, a advogada Guiomar Mendes. Inclui também a mulher de Dias Toffoli, a advogada Roberta Rangel. Dias antes do despacho de Moraes, Toffoli suspendera investigações da Receita, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), e do Banco Central que envolvessem compartilhamento detalhado de informações sem autorização judicial. Fez isso a partir de recurso da defesa do senador Flávio Bolsonaro. Beneficiário da decisão, o filho Zero Um do presidente usufrui desde então da interrupção do processo que corria contra ele no Ministério Público do Rio de Janeiro por suspeita de lavagem de dinheiro.
O Sindifisco enxerga uma ação coordenada nas investidas contra o aparato estatal de controle. Em nota divulgada na sexta-feira, a entidade escreveu: "A suspensão de investigações da Receita Federal para blindagem de agentes públicos, a mordaça imposta ao Coaf, os injustos questionamentos do TCU quanto à remuneração dos auditores, os puxadinhos à Lei do Abuso de Autoridade, as tentativas de ingerência políticas do alto do Planalto e as consequentes exonerações e afastamento de servidores precisam, urgentemente, encarar uma forte reação."
Os auditores afastados por Alexandre de Moraes integravam uma equipe especial de combate a fraudes criada em 2017 pela Receita. No início de suas atividades, esse grupo realizou dois levantamentos. O primeiro envolveu cerca de 800 mil agentes públicos, cônjuges, dependentes, parentes até segundo grau, sócios e empregados domésticos. O segundo refinou a pesquisa, detectando rendimentos isentos acima de R$ 2,5 milhões de agentes públicos seus sócios e cônjuges. Foi a partir dessas duas pesquisas que nasceu a lista de 133 contribuintes que constavam da auditoria interrompida por Alexandre de Moraes.
Nas pegadas das decisões de Moraes e Toffoli, Jair Bolsonaro decidiu intervir no Coaf. Nos próximos dias, o governo enviará ao Congresso medida provisória transferindo o órgão do Ministério da Economia para o Banco Central. Simultaneamente, será exonerado o atual chefe do Coaf, Roberto Leonel. Trata-se de um auditor que fez carreira no setor de inteligência da Receita. Contribuiu decisivamente nas investigações da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Foi deslocado para o Coaf por indicação do ministro Sergio Moro (Justiça).
A cabeça de Roberto Leonel aproximou-se da bandeja depois que ele criticou em entrevista a decisão de Tofolli de estender a suspensão da investigação contra Flávio Bolsonaro a todos os processos com dados compartilhados pelo Coaf e pela Receita sem ordem judicial. A degola do chefe do Coaf deve ser apressada por notícia veiculada pela Folha neste domingo. Reportagem feita em parceria com o site The Intercept Brasil revela que a força-tarefa da Lava Jato recorria a Leonel na época em que ele servia na superintendência da Receita em Curitiba para obter dados fiscais de investigados em procedimentos embrionários, quando ainda não havia elementos para a quebra de sigilo.
Além de travar o Coaf, o governo Bolsonaro elabora um plano de reformulação da Receita. A ideia é transformar o órgão numa agência "independente". Funcionaria nos moldes de agências já existentes, como a Anatel e a Aneel. Cuidaria da fiscalização de fraudes tributárias e da arrecadação. Bolsonaro indicaria o chefe da agência. O pretexto é, de novo, a necessidade de evitar hipotéticas ingerências políticas. Ironicamente, Bolsonaro critica as agências reguladoras desde a campanha justamente por terem se transformado em nichos de politização. O atual secretário da Receita, Marcos Cintra, permaneceria vinculado ao Ministério da Economia. Com as atribuições lipoaspiradas, Cintra passaria a cuidar apenas da formulação da política tributária.
É contra esse pano de fundo que a corporação do Fisco inaugura o seu "contra-ataque". A crise foi potencializada pelas tentativas de Bolsonaro de intervir no trabalho da Receita no Rio de Janeiro. Sob o delegado do porto de Itaguaí, José Alex de Oliveira, um dos servidores que o presidente da República deseja afastar, realiza-se uma investigação sobre esquema que envolve fraudes supostamente praticadas por membros de milícias. Coisa relacionada ao tráfico de armas provenientes da China.
"O Fisco brasileiro jamais poderá deixar-se sucumbir a interesses escusos que não guardam qualquer similaridade com os objetivos republicanos traçados pela Constituição Federal de 1988", escreveu o Sindifisco na nota redigida há dois dias. "Sobre todos os cidadãos, independentemente da posição que ocupem, devem imperar a Constituição e as leis que regem nossa República. Absolutamente ninguém está acima da lei. E não se pode aceitar a completa inversão de valores proposta pelo bunker daqueles que dela mais temem."
A encrenca na Receita agrava-se no mesmo instante em que uma ação de Bolsonaro deflagrou uma crise também na polícia Federal ao tentar acomodar na superintendência do órgão no Rio de Janeiro um delegado de sua confiança. Conforme noticiado aqui, o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, subordinado a Sergio Moro, ameaçou exonerar-se do posto. O presidente deu um passo atrás. Aceitou a nomeação de outro delegado. Mas alcançou parte do seu objetivo, obtendo a remoção do atual chefe da PF no Rio, Ricardo Saadi, que deixaria o cargo apenas no final do ano. Agentes federais sob o comando de Saadi também realizam investigações envolvendo milícias.
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