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Josias de Souza

Panelaço deu a Bolsonaro aparência de ‘Dilmo’

Josias de Souza

24/08/2019 04h35

Sob os efeitos de uma crise ambiental que ele mesmo criou, Jair Bolsonaro exibiu seu cenho crispado numa rede nacional de tevê. Expôs uma fluorescente consciência ambiental. Tratou a floresta amazônica com insuspeitado apreço. Reprovou o desmatamento. Expôs um plano anti-queimadas. Tudo isso e mais um pedido de "serenidade". Ou seja, Bolsonaro estava completamente fora de si. Eis senão quando, de repente, ouviu-se o som das panelas. Antecedido por um ronco das ruas, o panelaço ateou na plateia uma sensação de déjà vu. O capitão ganhou uma incômoda aparência de 'Dilmo'.

Bolsonaro soou como anti-Bolsonaro. "A proteção da floresta é nosso dever", declarou a certa altura. "Estamos cientes disso e atuando para combater o desmatamento ilegal e quaisquer outras atividades criminosas que coloquem a nossa Amazônia em risco." Foi como se o presidente expusesse uma agenda secreta, pois desde que assumiu, há oito meses, conduzia o governo noutra direção. Desossou o Ibama, anestesiou a fiscalização ambiental e transformou em letra morta o artigo 111 do decreto 6.514, de 2008, que autoriza a destruição de máquinas e veículos de ladrões de madeira.

Bolsonaro soou em rede nacional de tevê como um anti-Bolsonaro

UOL Notícias

Noutro trecho, o capitão disse comandar "um governo de tolerância zero com a criminalidade." O brasileiro ficou autorizado a suspeitar que está sendo governado por um sósia de Bolsonaro. Um sujeito desqualificado, capaz de promover o ministro Sergio Moro da frigideira para o micro-ondas, desligar o Coaf da tomada e expor na frente das crianças sua tara por intervenções na Receita e na Polícia Federal. A intolerância com o crime será idêntica "na área ambiental", declarou Bolsonaro, distanciando-se do sósia, que acomodou Ricardo Salles, um sentenciado por improbidade, na poltrona de ministro do Meio Ambiente.

Para deter as queimadas, Bolsonaro disse ter oferecido "ajuda a todos os estados da Amazônia Legal". Envolve o emprego das Forças Armadas. Na véspera, o sósia chamava os governadores de cúmplices de ONGs piromaníacas. E lavava as mãos: "O Ministério da Justiça pode mandar 40 homens. Dá para entender? Quarenta homens para combater incêndio! Dá para entender? Não tem recurso. Chegou num caos".

O Bolsonaro da tevê referiu-se ao Brasil como "exemplo de sustentabilidade". Enalteceu o Código Florestal brasileiro como um "modelo para o mundo". Há apenas dois meses, o sósia do capitão editara uma medida provisória que conspirava contra um dos pilares do código. Extinguia o prazo para que os donos de terras realizassem o Cadastro Ambiental Rural. Algo muito parecido com uma anistia para desmatadores, pois o cadastramento permitiria a cobrança de multas de proprietários rurais em desacordo com as exigências ambientais do código. As panelas entraram em transe.

Panelaço deu à aparição de Bolsonaro uma sensação de déjà vu

TV Folha

O anti-Bolsonaro pediu "serenidade" no trato de matérias ambientais. Endereçou uma indireta para o presidente francês Emmanoel Macron, que ilustrara um tuíte sobre o surto de queimadas na Amazônia com uma foto antiga, clicada por um fotógrafo que morreu em 2003: Loren McIntyre, da National Geographic. O sósia de Bolsonaro deve ter vestido a carapuça.

Além de atribuir crimes às ONGs sem provas, o sujeito que se faz passar pelo capitão no trono do Planalto compartilhara nas redes sociais um vídeo radioativo. Exibe a matança de golfinhos nas ilhas Feroe. O propósito do sósia era o de alfinetar a Noruega, que suspendera repasses financeiros para o Fundo Amazônia. O diabo é que as ilhas Feroe pertencem à Dinamarca, não aos noruegueses.

Em sua versão televisiva, Bolsonaro vendeu-se como um cultor do "diálogo". Nada a ver com o impostor do Planalto, que cria crises do nada. Revelou, de resto, que "outros países se solidarizaram com o Brasil", oferecendo "meios para combater as queimadas" e prontificando-se para atuar como advogado do Brasil na reunião do G7, neste final de semana. Referia-se aos Estados Unidos de Donald Trump. O sósia de Bolsonaro, após dar de ombros para a suspensão de doações milionárias da Alemanha e da Noruega, decerto responderia a Trump que "o Brasil não precisa" de esmolas.

A descoberta de que há no governo um Bolsonaro clandestino, portador de uma agenda ambiental secreta, é uma novidade alvissareira. Agora, para exorcizar o fantasma "Dilmo", silenciar as panelas e devolver as ruas às suas casas, basta eliminar o sósia.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.